sexta-feira, 8 de julho de 2011

Conto "O último passageiro"


Ao entrar pela porta que dá acesso às escadas rolantes, José Luis percebeu que se encontrava na rodoviária do Tietê. Olhou para seu relógio adiantado, depois mirou o da rodoviária. Estava atrasado. Foi ao guichê da empresa de ônibus em que tinha comprado a passagem de volta para a sua cidade de origem, lá na puta-que-o-pariu. Chegando ao balcãozinho de serragem prensada, pode perceber a bela moça que se encontrava do outro lado daquele vidro ou acrílico, todo arranhado, riscado e com lascas faltantes nas extremidades inferiores. Seu decote era tão, tão erótico que José Luis esqueceu-se do que iria perguntar e o que estaria fazendo em tal lugar. Estava pensando na vontade de afogar naqueles seios rubros, de soltar aqueles cabelos ondulados em forma de coque e possuir aquela mulher.
Estava ali parado, igual a um imbecil, tosco de rosto, até que aquela volúpia de moça, cansada, não vendo a hora de seu expediente se encerrar, perguntou-lhe:
- Posso ajudar, senhor? – Na verdade ela não estava nem um pouco a fim de lhe oferecer qualquer tipo de ajuda.
- Ah... ? Sim, pois não... Nossa... Tenho reservada uma passagem para sei-lá-onde e queria verificar a que horas o ônibus sai.
- Sim senhor, pode-me passar o número de sua passagem? – Que fardo!
- Claro! – Procurou na bolsa que carregava, depois nos bolsos de sua jaqueta, depois nos da calça, a atendente já estava sem nenhum pingo de paciência – Aqui está! O número é nove, zero, zero, zero... – Aquela formosura de moça digitava os números no computador do sistema nem se importando ou prestando atenção se estavam corretos ou não - ... zero, dois, um. Pronto!
- Só um minuto. Aqui está. O ônibus com destino ao fim-do-mundo já saiu há uma hora.
- Mas não pode ser... O que eu faço agora?
- Não sei, meu senhor, não estou nem um pouco interessada.
- Mas a senhorita não pode arrumar outra passagem?
- O próximo ônibus com destino para essa-cidade-esquecida-por-Deus sai às dezoito horas... – Menos mau, daqui à duas horas - ... de amanhã. Só resta uma única passagem. Pode ser?
- Hein? Só amanhã...? Tudo bem, fazer o quê? – O monumento já não aguentava mais ouvir aquela voz idiota, daquele homem idiota e de olhar idiota.
- Tudo certo, então. Aqui está seu comprovante. Posso lhe ajudar em mais alguma coisa? – Não!
- Não, não, não...  Posso ficar aqui na rodoviária enquanto espero o ônibus? – A sua cara de pedinte e tristeza implorava compaixão e um teto para passar a noite.
- Sim, meu senhor, pode sim, contanto que fique longe de mim e não me siga quando eu for embora.
- Claro que não! Tudo bem, vou ficar ali encostado no banco – Nisso, na fila já estavam duas pessoas muito impacientes.
- Ok, então me dê licença que tem mais gente na fila. Um bom fim de tarde e boa viagem, até logo – E não pode deixar de dar aquele sorrisinho forçado e falso de aeromoças.
José Luis, coitado, teria que passar a noite na rodoviária, sentindo frio e dormindo num desses bancos de plástico, bastante desconfortáveis. Acredito que o curioso leitor queira saber o que José Luis está fazendo em São Paulo, e sem condições de dormir num hotel. Na verdade, ele veio visitar uma tia doente. Hospedou-se num hotel barato na Sé por dois dias e havia comprado, desde já, a passagem de volta. No primeiro dia na capital, deu algumas voltas pela região central. Foi roubado e levaram-lhe cinquenta reais. O resto do dinheiro que estava na meia serviu para pagar um sanduíche de churrasco grego, nesse mesmo dia visitou a tia e voltou ao “hotel”. Foi dormir por volta das oito da noite. Mas o barulho da cidade não no deixou entregar-se à Morpheu. Então se vestiu, pegou os duzentos reais que estavam numa de suas malas e foi usufruir a noite da cidade da garoa. Foi aí que cometeu seu maior erro. Entrou numa das casinhas-de-luz-vermelha da Sé. Arrumou um rabo de saia, bebeu todas e gastou todos os duzentos reais. Os únicos. O único dinheiro que tinha depois do roubo e do churrasquinho. Voltou ao amanhecer, quase foi atropelado na Avenida Maria Paula pelo trânsito das seis da manhã. Entrou no quarto e deitou-se na cama. Ao acordar, de ressaca, lembrou-se de sua falecida mãezinha e pediu perdão pela noite de libertinagem – quem fez isso foi a personagem, e não eu, este modesto narrador ateu que vos fala. Ou melhor, que voz escreve – vestiu-se, almoçou no restaurante do hotel e quando foi pagar a conta pela estadia, viu que não tinha mais nenhum tostão. Averiguou todas as meias, malas e bolsos. Nada! E o dono, para não sair no prejuízo o fez lavar toda a louça do almoço e dos cafezinhos servidos aos outros hóspedes. Só então pode partir para a rodoviária e daí vocês já sabem.
Então, José Luis estava lá, sentado no banco de plástico a observar todos os movimentos humanos e inumanos que vagavam pela rodoviária. Ali perto se encontrava um mendigo. Não muito sujo, não muito limpo. Quando o mendigo avistou José Luis, correu, literalmente, correu para se sentar ao seu lado. Tentou puxar conversa com José Luis, ofereceu um cigarro a José Luis, ficou olhando com um amigável sorriso esperando respostas de José Luis. E José Luis levantou-se, e sentou-se em outro banco, agora de madeira. Um olhava para o outro, frente a frente, e permaneceram neste estado por horas. Em busca de algo para saciar o tédio ocioso que tomava conta do tempo, o nosso protagonista revirou sua bolsa, retirou um livro do Saramago. Por este lado, José Luis não era tosco, nem idiota, nem imbecil. Leu dez, vinte, trinta páginas, e quando chegou na trigésima primeira, encontrou uma nota de dois reais. A felicidade tomou conta de sua face, seus olhos tiniam ao olhar aquela velha, amassada e enrugada nota. Como ainda eram dez horas da noite e a rodoviária ainda estava cheia, saiu em busca de algum alimento. Comprou um sanduíche de queijo com presunto, uma dose de Rabo-de-Galo e um pingado. Voltou ao seu banco para poder saciar a fome que tomava conta de suas entranhas.
Nestes exatos quinzes muitos em que ceava, começou a reparar nas pessoas que ali estavam ao seu redor. Havia um casal homossexual aos beijos numa das calçadas. Outro casal, só que heterossexual, aos amassos num canto escuro, e não muito longe dele uma moça lendo um desses livros mágicos de fantasias mágicas. E, na sua frente, o mendigo que lambia os beiços ao ver o sanduíche. Não pode deixar de mirar tal mendigo e sua fome, que também o consumia. Levantou-se e foi direto ao coitado, ofereceu o resto de pão que sobrou e a dose por completa da pinga e bebeu o pingado.
- Muito obrigado, meu senhor, que os astros lhe protejam em seu caminho.
- Ainda tem aquele cigarro que me ofereceu antes?
- Sim, tome. Não fumo.
- Então por que o guardou consigo?
- Porque sabia que você estaria aqui.
- Mas como sabia?
- Ouvi sua conversa com aquela beldade de moça sobre sua passagem. Quando você mexeu em sua bolsa, deixou cair um maço vazio e quando vi que um rapaz tinha deixado cair um único câncer num desses bancos, guardei-o para lhe oferecer.
- Muito obrigado, então. Sabe, não sei como matarei o tempo até a hora de meu ônibus.
- Onde você mora?
- Onde-Judas-perdeu-as-botas.
- Ah... O que está lendo?
- Saramago, conhece?
- Sim, já li cinco de suas obras.
- Como leu? Como o conheceu?
- Fui professor.
E os dois ficaram ali conversando por horas. O casal gay se foi. O outro casal entrou num dos ônibus e a moça da mágica magia entrou no banheiro e sumiu. José Luis cochilou, o mendigo começou a ler o livro e amanheceu. Os guichês abriram por volta das oito da manhã, e um pouco antes, aquela moça do começo da história passou para iniciar seu turno. Viu José Luis, continuou caminhando e dirigiu-se ao seu posto de trabalho, lá abriu o sistema e verificou que à meia hora sairia um ônibus com destino a muito-longe, e que havia uma única passagem sobrando. Ela correu até onde se encontrava José Luis e o acordou. O mendigo que estava na metade do livro ficou a observar e não pode deixar de ver seus seios fartos e muito mais rubros que o normal.
- Senhor, senhor, acorde senhor!
- Ah... Sim, sim...
- Tenho ótimas notícias para o senhor, daqui à meia hora tem um ônibus que partirá sentido a sua cidade e consegui colocá-lo neste embarque – Nesta hora José Luis já estava bem acordado e com sorriso de orelha à orelha.
- Mas antes escova estes dentes que o bafo está me matando – disse o mendigo.
- Mas é claro! Como posso agradecer?
José Luis correu para o banheiro, escovou os dentes, os cabelos e a cara por completa, saiu de lá como gente. Foi ao mendigo, agradeceu o cigarro, a companhia e deu-lhe o livro para que o terminasse de ler. O mendigo agradeceu, despediu-se de José Luis que saiu correndo para a fila do ônibus. Quando a moça percebeu que ele já iria embora, foi até ele.
- Desculpe-me se fui grossa com o senhor no começo – Nisso a voz da moça deixou de ser profissional e passou a ser sensual, mas melancólica. José Luis, que de tonto não tinha nada, disse:
- Não me chame de senhor, mas de você.
- Então, quando você voltar para São Paulo, venha me visitar – E deixou um papelzinho no bolso da jaqueta de José Luis – Até logo e boa viagem.
- Despediu-se, e o nosso protagonista ficou ali parado, admirando aquele paraíso em forma humana indo embora num rebolado gingado, desmontando o quadril. Só saiu do transe quando o motorista o chamou e José Luis entrou e sentou-se no lugar indicado pela terceira e nova passagem.
Quando se sentou, José Luis se lembrou do bilhete em seu bolso. Retirou-lhe de lá e começou a lê-lo. Nele havia o telefone e o endereço da moça e uma dedicatória: “Ao meu último passageiro. Com amor. Moça”.

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