quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Nota de ressurreição 

Num belo dia de outubro de 2013, se não me engano, mais de um ano que havia esquecido desse espaço, o Revolução Cult, uma importante amiga o lembra a mim: perguntando de sua vida.
Eis-me aqui agora: a ressuscitar com algumas palavras esse espaço, que segurou e recepcionou minhas ideias prematura sobre literatura, filosofia e sociedade, que abrigou algumas de minhas poesias e alguns contos.
Enfim, terminei de escrever os poemas que irão compor minha primeira antologia, cujo nome inspirei-me no romantismo alemão e nos poetas malditos franceses do séculos XIX: chama-se "Outras tempestades, ímpetos e flores".
Ainda penso em terminar alguns contos e também reuni-los em uma antologia, mas esse é um plano futuro assim como a reunião de ensaios sobre literatura,
E, por fim, estou pensando em iniciar um outro  projeto poético, cujos poemas são mais livres, alguns mais musicais outros mais narrativos, que lembrem a poesia de Verlaine e T. S. Eliot, mas ainda melancólicos tentando exprimir os lirismos da alma.
Segue, agora abaixo, o primeiro poema dessa nova ideia.




Canção nublada

E vou-me ao vento, que num tormento,
me transporta de cá para lá,
como faz à folha morta.

Paul Verlaine

I

Ah, praia vazia e nublada;
A temperatura até é suportada.
Sentado na varanda,
com um livro a sentir,
um disco de bossa a emergir,
Enfim, a alma descansa.

II

Um dia sem expressão,
sem clima, nem paixão.

III – Un petit poème expérimental et existentialiste

Il y a choses que je n’ai pas compri
et moi, je ne vais pas, et ni
je ne veux pas connaître et comprendre.
Aujourd’hui, il y a seulement moi,
et je vai plus ou moins, sans savoir
pourquoi je ne suis bien.

IV

Várias ideias e inspirações
para poesias e narrações,
mas a maioria delas voam
perdidas e confundidas ao vento,
ao mar, por demasiado tempo.
Poucas voltam, ficam e me perdoam.


sexta-feira, 28 de outubro de 2011

O Livro do Desassossego, de Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

   “A vida é para nós o que concebemos nela. Para o rústico cujo campo próprio lhe é tudo, esse campo é um império. Para o César cujo império lhe ainda é pouco, esse império é um campo. O pobre possui um império; o grande possui um campo. Na verdade, não possuímos mais que as nossas próprias sensações; nelas, pois, que não no que elas vêem, temos que fundamentar a realidade da nossa vida.
    Isto não vem a propósito de nada.
    Tenho sonhado muito. Estou cansado de ter sonhado, porém não cansado de sonhar. De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos. Em sonhos consegui tudo. Também tenho despertado, mas que importa? Quantos Césares fui! E os gloriosos, que mesquinhos! César, salvo da morte pela generosidade de um pirata, manda crucificar esse pirata logo que, procurando-o bem, o consegue prender. Napoleão, fazendo seu testamento em Santa Helena, deixa um legado a um facínora que tentara assinar a Wellington. Ó grandezas iguais à da alma da vizinha vesga! Ó grandes homens da cozinheira de outro mundo! Quantos Césares fui, e sonho todavia ser.
Quantos Césares fui, mas não dos reais. Fui verdadeiramente imperial enquanto sonhei, e por isso nunca fui nada. Os meus exércitos foram derrotados, mas a derrota foi fofa, e ninguém morreu. Não perdi bandeiras. Não sonhei até ao ponto do exército, onde elas aparecessem ao meu olhar em cujo sonho há esquina. Quantos Césares fui, aqui mesmo, na Rua dos Douradores. E os Césares que fui vivem ainda na minha imaginação; mas os Césares que foram estão mortos, e a Rua dos Douradores, isto é, a Realidade, não os pode conhecer.
    Atiro com a caixa de fósforos, que está vazia, para o abismo que a rua é para além do parapeito da minha janela alta sem sacada. Ergo-me na cadeira e escuto. Nitidamente, como se significasse qualquer coisa, a caixa de fósforos vazia soa na rua que se me declara deserta. Não há mais som nenhum, salvo os da cidade inteira. Sim, os da cidade dum domingo inteiro – tantos, sem se entenderem, e todos certos.
Quão pouco, no mundo real, forma o suporte das melhores meditações. O ter chegado tarde para almoçar, o terem-se acabado os fósforos, o ter eu atirado, individualmente, a caixa para a rua, mal disposto por ter comido fora de horas, ser domingo a promessa aérea de um poente mau, o não ser ninguém no mundo, e toda a metafísica.
    Mas quantos Césares fui!”

SOARES, Bernardo; PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. Portugual: 1930.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Nem poesia nem prosa, mas ao meio termo entre as duas - Ensaio sobre o poema-em-prosa

            Antes de partir para o poema em prosa da Cristina Cesar, é necessário relembrar o que é poema. Na forma gráfica, poema é um texto em verso. O conjunto de versos forma a estrofe. Na estrofe os versos são organizados em forma rítmica, isto é, sonoridade presente nas rimas (internas e nas que finalizam cada verso). A partir daí tem-se três características básicas e primárias do poema: verso, ritmo (som) e rima.
          No caso do poema em prosa, este é uma “mini narrativa”, isto é, nem conto, nem crônica, nem notícia, mas sim um texto poético em forma de prosa. Para ser considerada um poema, esta pequena prosa poética tem que, pelo menos, possuir as três características primárias do poema (o mais poético de todos os textos), que são: o verso, o ritmo e a rima. Por este caminho, é necessário enxergar na prosa poética o verso subentendido. Ou seja, peguemos o poema “Sete-chaves”. O que caracteriza o verso embutido na prosa, porém este não é um verso gráfico, pois se trata de uma prosa e não poema em si, é a pausa por pontuação, primeiramente. Isto é, pode-se considerar que cada frase entre vírgulas ou entre pontos finais, seja um verso, isso porque estas pausas, na oralidade, dão ritmo a um som mais “quebrado”, típico da declamação poética. Um exemplo é o seguinte trecho do “Sete-chaves”: “(...) Estou tocada pelo fogo. Mais um roman à clé? Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher moderna. Nem te conheço. Então: (...)”.
      Outra característica sonora, isto é, que tem função rítmica é o som das palavras por meio de fones semelhantes: “Vamos tomar chá das cinco e eu te conto minha grande história passional, que guardei a sete chaves, e meu coração bate incompassado (...)”. No caso, o uso dos fones /s/ e /x/ faz tem a função de “som” para que o poema em prosa assemelhe-se ao som provocado pelo molho de chaves, por exemplo.
     Outro exemplo para confirmar que a presença submersa do verso nas frases prosaicas é por meio das pausas (orações razoavelmente curtas) e com a combinação de sons, o que compõe o ritmo (característica poética) do poema em prosa é o exemplo do seguinte trecho do poema “O cão e o frasco”, de Baudelaire: “(...) entre esses pobres seres, o sinal correspondido ao riso e ao sorriso, aproxima-se e, curioso, mete o nariz úmido no frasco destampado; porém subitamente, recuando de susto (...)”.
       E a rima? A função da rima é proporcionar som e ritmo, neste caso, o ritmo presente nas frases do poema em prosa abarca as três características primárias do poema.
       Outra questão em relação aos poemas em prosa é que, no poema a combinação é entre sentido/som. Já no caso do prosa poética a combinação é entre a sintaxe (que constrói a estrutura de sentido, pois é uma narrativa) e a semiótica (como o uso sonoro de fones, por exemplo).
       Em suma, o poema em prosa não é poema de versuras, pois sua forma tipográfica não o permite, mas também não é apenas prosa narrada, pois possui o ritmo do poema em rimas. Por essa razão que Agamben afirma que “mas ao meio termo entre as duas”, pois a prosa poética possui característica de um (o ritmo, por exemplo), na forma de outro (narrativa, por exemplo). A intenção de “meio termo” sugere uma ideia de “ainda indefinido”, e considero, eu, o poema “Sete-chaves” uma metalinguagem em relação à escrita prosa-poética. Principalmente no trecho: “(...) É daqui que eu tiro meus versos, desta festa – com arbítrio silencioso e origem que não confesso (...)”.


Sete chaves
(Ana Cristina Cesar)

Vamos tomar chá das cinco e eu te conto minha grande história passional, que guardei a sete chaves, e meu coração bate incompassado entre gaufrettes. Conta mais essa história, me aconselhas como um marechal do ar fazendo alegoria. Estou tocada pelo fogo. Mais um roman à clé? Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher moderna.
Nem te conheço.
Então:
É daqui que eu tiro versos, desta festa – com arbítrio silencioso e origem que não confesso – como quem apaga seus pecados de seda, seus três monumentos pátrios, e passa o ponto e as luvas
.


O cão e o frasco
(Charles Baudelaire)

- Meu bom cão, meu cachorrinho, querido Totó, chegue- se e venha respirar um excelente perfume comprado no melhor perfumista da cidade.
E o cão, agitando a cauda, o que é, creio eu, nesses pobres seres, o sinal correspondente a um sorriso ou riso, aproximou-se e pousou curiosamente seu focinho úmido sobre o frasco destampado; em seguida, recuando subitamente, com medo, latiu contra mim como se me reprovasse.
- Ah! miserável cão, se eu tivesse lhe oferecido um pacote de excrementos, você o teria farejado com prazer e talvez até devorado. Assim você mesmo, indigno companheiro de minha triste vida, você se parece com o público a quem não se pode jamais presentear com perfumes delicados que o exasperam mas com sujeiras cuidadosamente escolhidas.

sábado, 17 de setembro de 2011

Ensaio sobre a arte de escrever - Capítulo 1 - O Universo Paralelo.

Escrever é um trabalho de campo no universo do qual se escreverá. Ou seja, é necessário tanto conhecer a atmosfera a qual será escrita, pois a tentativa da escrita literária é de simular a vida real. Estando criada a atmosfera, também é obrigação do autor embarcar no universo criado. Ele (o autor) tem que colar em suas personagens, sentar-se no banco do jardim junto delas e, antes de tudo, sempre estar acompanhado de seu leitor. Trabalho de, literalmente, dar as mãos ao leitor e conduzi-lo neste mundo paralelo.
Umas das técnicas para a criação da atmosfera literária é o domínio do universo das palavras, linguisticamente falando, que serão usadas durante a composição da obra. A criação de persongens que são do convívio popular integra e identifica muito mais o leitor e o faz envolver-se com a história de forma mais intensa.
Por concluir este primeiro capítulo, tratando-se da escrita do ponto de vista da Filosofia Política, escrever não é Trabalho ou Labor. Digo Trabalho como a necessidade biológica da existência, isto é, não-liberdade. A escrita, principalmente a literária, é a condição mais plena de liberdade que um ser humano pode adquirir. Labor no caso de Obra. O produto escrito não é um simples produto e não pode ser caracterizado como tal sem ação sociopolítica. Escrever é a mais verdadeira e prática Ação, ou seja, é o relato da memória, é a ideologia que está acima de qualquer condição biológica e limitada.

Dicas de Leituras:

Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo;
Os miseráveis, de Victor Hugo;
Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis;
Esaú e Jacó, de Machado de Assis;
Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade;
Capitães da Areia, de Jorge Amado;
A condição humana, de Hanna Arendt.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Amor e outros desastres


O homem:
Ninguém até agora conseguiu definir
Não consigo mais me concentrar.
Não leio, não escrevo, apenas... Pensar,
Nisto que, como você, tem a mania de ir.

A amada:
É o amor! Este que corre riscos,
Que doa sem esperar nada em troca,
Que não tem medo de se entregar,
E no delírio só pensa em amar.

O homem:
Então é isso que sinto.
É torpor, é calor, é fulgor!
A destruição do passado findo.
O abismo futuro, e nele não fico.

A amada:
É o amor, meu amor, companheiro, amado
E querido! Eu te amo!
Deixe de caso, venha me errar
Amar! O amor sempre perdoará.

Conto "Dose dupla"


Olhava para o relógio. O trem sentido Luz estava atrasado. O último passara há quinze minutos. Os ponteiros marcavam cinco e meia da tarde. Fazia frio. Ventos gelados do Sul acompanhados por uma garoa de resignação bem a gosto de São Paulo cortavam-me o rosto. O que eu mais desejava era chegar à minha casa, tomar um bom café, e deitar-me, ou para ler, ou para escrever, ou para assistir algum filme na televisão.
Abri um dos meus exemplares de George Orwell, lia-o, devorava-o ferozmente. Assim como qualquer leitor, parei a leitura por alguns instantes, e para o nada olhei. Estava refletindo sobre o que tinha lido. Mas desta vez, meu devaneio de olhar solitário não amou o nada e nem retomou a leitura. Não. O meu devaneio de olhar encontrou outro devaneio de olhar. Bem à minha frente, do outro lado do trilho. Ela não tinha livro em suas mãos. Então por que devaneava? Pensando apenas? E por que em minha direção?
O livro, já antes fechado, fora esquecido por mim – não sei como não o deixei no banco da estação - Meu olhar, minha mente, voltava-se em tentar decifrar quem era a bela moça em minha frente e o que ela pensava. A distância não afetou a percepção de seus detalhes. Pude perceber as peculiaridades do rosto, uma boca singela, carnuda e com sede de amar. Um olhar misterioso, cigano, de ressaca. Seus cabelos negros, levemente iluminados com fios castanhos. Havia um brilho no nariz, acho que era um brinco de nariz. Não pude distinguir pela distância. E também porque não parava de olhar sua franja, que com certeza era cortada à mão.
Nunca senti meu coração bater tão forte. Sentia a mão umedecer, um calor voluptuoso subiu pelo tronco até atingir minha face. Mas esta interação por olhar foi cortada pelos vagões vagarosos do trem que chegava à estação. O trem sentido bairro partiu, e lá ela não estava mais. Não se passaram mais de cinco minutos, e o trem, no qual embarcaria rumo à Luz chegou e parti.
Todos os dias sentava-me no mesmo banco, no qual sentei no dia que a vi pela primeira vez. Não a vi mais desde então. O trem sempre atrasava, e mesmo assim ela não estava lá. A não ser por um dia em especial. O trem atrasara como sempre, e lá ela estava. Um pouco diferente. Pelo que me lembro – é importante ressaltar que mesmo dentro de uma cortina de névoa que a distanciava em minha mente, pude reconhecer seu rosto – seu cabelo era menor. Deveria ter cortado. Ela se levantou! Por quê? Cansara de esperar o trem? Não sei, só sei que ela subiu as escadas rolantes sentido à bilheteria da estação. Num movimento frenético e involuntário levantei-me e fiz o mesmo. A estação estava cheia de gente. Ela não era muito alta, na verdade, eu que sou muito alto, mas quase a perdi de vista em meio à multidão. Ela se dirigia ao terminal de ônibus – pela demora poderia ter mudado de ideia em relação ao transporte público, sendo qualquer outro que a levasse a seu destino em menos tempo – não que eu acredite em destino ou em divindade. Não! É tudo papo furado, mas parece que os deuses conspiravam ao meu lado. A escada rolante pifou e ela ficou travada, não pode descer, pois a escada estava repleta de gente. Foi o tempo necessário para alcançá-la e tocar de leve em seu ombro para chamar-lhe a atenção. Foi o que aconteceu. Ela se virou a mim. Disse meia dúzia de palavras e a convenci de ir tomar café comigo numa cafeteria perto dali. No caminho conversamos sobre diversas coisas. Todas inúteis. Conversamos tanto naquele fim de tarde. O café nunca foi tão bom. A fumaça da temperatura da xícara subia e contrasteava com os olhos castanhos dela. Como era bela. A pele branca, o sorriso perfeito com grandes e justapostos dentes, um sorriso largo. O que mais desejava era beijar aqueles lábios, que pareciam macios, com gosto de café! Falamos tanto, não conversamos nada. Nada. Ela carregava consigo um livro. Ela me contou a história. Contou sobre seu trabalho de tradutora de livros em francês. Contei sobre meu trabalho de professor de literatura. Fomos muitos felizes durantes as três horas que passaram.
Nossa ligação tímida na rasteira intimidade que se gerou entre nós foi burlada quando ela olhou em seu relógio. Quase nove horas. Precisava ir. Despediu-se de mim. Fez questão de dividir a conta, deixou três notas de dois reais na mesa junto a um cartão. Beijou-me na bochecha direita e sua imagem foi se esvaindo conforme ela abrira a porta e partia rumo à estação.
O cartão continha seu nome, diferente, inusitado – demorei horas para aprendê-lo - e o telefone do escritório, onde trabalhava.
No dia seguinte liguei para o número. Ela atendeu. Marcamos de almoçarmos juntos. Ela trabalhava num escritório perto da Liberdade. Fui até lá. O mais estranho é que não almoçamos o que eu acharia que iria almoçar. Quando me viu, ela me agarrou e levou-me a um “hotel” ao lado do restaurante. Jogou-me na cama. Estava completamente confuso, apesar de realmente estar querendo almoçar o prato que ela ia me oferecer. Transamos loucamente. A cama bateu tanto na parede que marcou a forma da cabeceira na mesma. Praticamos tantas posições, que o Kama Sutra ficou curto e sem graça. Ela me deixou descansar por apenas cinco minutos, e em cima de mim já estava atiçando-me, esfregando-se, cavalgando, e me fazendo ver estrelas com muito calor e suor de novo.

Como não podia faltar. Este meu personagem, depois de uma transa, precisaria acender um cigarro. Foi o que ele fez.

Acendi um cigarro. Ela me esperou terminar de fumá-lo para se dirigir ao banheiro do quarto. Chamou-me e tomamos banho juntos. Juntos, corpos unidos e molhados, agora não por suor, mas pelas gotas mornas que saiam do chuveiro, formando um único corpo de paixão. Ela precisara voltar ao trabalho, estava meia-hora atrasada.
Essas brincadeiras, essas aventuras, duraram dois meses. Todo santo dia. Na hora do almoço, no hotel da Liberdade e à noite em meu apartamento na Luz. Estávamos apaixonados. Eu, doente de amor. Não conseguia passar uma hora ou duas longe dela. Pensava nela enquanto dava aula. Pensava nela enquanto tomava meu café. Pensava nela enquanto fumava meu cigarro. Pensava nela enquanto lia o livro da vez. Pensava nela quando pegava o trem.
Num dia liguei em seu serviço. Uma voz diferente atendeu. Disse-me para correr se quisesse vê-la, pois o estágio dela em São Paulo tinha acabado e ela viajaria de volta à sua cidade no interior. Corri. Saíra da Luz rumo à Liberdade. Quando cheguei à porta do edifício lá estava ela partindo com uma mala. Parei-a e perguntei por que ia embora sem dizer nada a mim. Ela me respondeu que voltaria à sua cidade, numa região próxima à Araraquara – engraçado que ela não tinha a prosódia do interior, meu “porta” soava muito mais forte do que o dela – e que depois partiria rumo à França para se dedicar à tradução de seu idioma. Insisti por que ela não me avisara antes. Ela me respondeu que fui só uma aventura. Que eu era maluco o bastante de correr atrás dela na estação e que isso a fez despertar interesse por mim. Que eu era interessante e bonito. Mas não era amor. Não! Apenas uma aventura sexual. Uma eventualidade do cotidiano. Disse também que nunca se prenderia a um relacionamento. Fiquei tácito. Beijara-me e partira num táxi.  
Nunca mais a vi. A única vez que ouvi falar dela – na verdade, que li sobre ela – foi ao ler seu nome num livro, cuja tradução era sua. Mas a vida voltou ao normal. Continuei pegando o mesmo trem que sempre atrasava, continuei lendo meus livros enquanto esperava o trem atrasado. Até um dia que, enquanto devaneava, vi uma bela moça no outro lado da estação. Ela levantara, subira a escada rolante rumo à bilheteria. Levantei-me e fui atrás dela.

Conto "O último passageiro"


Ao entrar pela porta que dá acesso às escadas rolantes, José Luis percebeu que se encontrava na rodoviária do Tietê. Olhou para seu relógio adiantado, depois mirou o da rodoviária. Estava atrasado. Foi ao guichê da empresa de ônibus em que tinha comprado a passagem de volta para a sua cidade de origem, lá na puta-que-o-pariu. Chegando ao balcãozinho de serragem prensada, pode perceber a bela moça que se encontrava do outro lado daquele vidro ou acrílico, todo arranhado, riscado e com lascas faltantes nas extremidades inferiores. Seu decote era tão, tão erótico que José Luis esqueceu-se do que iria perguntar e o que estaria fazendo em tal lugar. Estava pensando na vontade de afogar naqueles seios rubros, de soltar aqueles cabelos ondulados em forma de coque e possuir aquela mulher.
Estava ali parado, igual a um imbecil, tosco de rosto, até que aquela volúpia de moça, cansada, não vendo a hora de seu expediente se encerrar, perguntou-lhe:
- Posso ajudar, senhor? – Na verdade ela não estava nem um pouco a fim de lhe oferecer qualquer tipo de ajuda.
- Ah... ? Sim, pois não... Nossa... Tenho reservada uma passagem para sei-lá-onde e queria verificar a que horas o ônibus sai.
- Sim senhor, pode-me passar o número de sua passagem? – Que fardo!
- Claro! – Procurou na bolsa que carregava, depois nos bolsos de sua jaqueta, depois nos da calça, a atendente já estava sem nenhum pingo de paciência – Aqui está! O número é nove, zero, zero, zero... – Aquela formosura de moça digitava os números no computador do sistema nem se importando ou prestando atenção se estavam corretos ou não - ... zero, dois, um. Pronto!
- Só um minuto. Aqui está. O ônibus com destino ao fim-do-mundo já saiu há uma hora.
- Mas não pode ser... O que eu faço agora?
- Não sei, meu senhor, não estou nem um pouco interessada.
- Mas a senhorita não pode arrumar outra passagem?
- O próximo ônibus com destino para essa-cidade-esquecida-por-Deus sai às dezoito horas... – Menos mau, daqui à duas horas - ... de amanhã. Só resta uma única passagem. Pode ser?
- Hein? Só amanhã...? Tudo bem, fazer o quê? – O monumento já não aguentava mais ouvir aquela voz idiota, daquele homem idiota e de olhar idiota.
- Tudo certo, então. Aqui está seu comprovante. Posso lhe ajudar em mais alguma coisa? – Não!
- Não, não, não...  Posso ficar aqui na rodoviária enquanto espero o ônibus? – A sua cara de pedinte e tristeza implorava compaixão e um teto para passar a noite.
- Sim, meu senhor, pode sim, contanto que fique longe de mim e não me siga quando eu for embora.
- Claro que não! Tudo bem, vou ficar ali encostado no banco – Nisso, na fila já estavam duas pessoas muito impacientes.
- Ok, então me dê licença que tem mais gente na fila. Um bom fim de tarde e boa viagem, até logo – E não pode deixar de dar aquele sorrisinho forçado e falso de aeromoças.
José Luis, coitado, teria que passar a noite na rodoviária, sentindo frio e dormindo num desses bancos de plástico, bastante desconfortáveis. Acredito que o curioso leitor queira saber o que José Luis está fazendo em São Paulo, e sem condições de dormir num hotel. Na verdade, ele veio visitar uma tia doente. Hospedou-se num hotel barato na Sé por dois dias e havia comprado, desde já, a passagem de volta. No primeiro dia na capital, deu algumas voltas pela região central. Foi roubado e levaram-lhe cinquenta reais. O resto do dinheiro que estava na meia serviu para pagar um sanduíche de churrasco grego, nesse mesmo dia visitou a tia e voltou ao “hotel”. Foi dormir por volta das oito da noite. Mas o barulho da cidade não no deixou entregar-se à Morpheu. Então se vestiu, pegou os duzentos reais que estavam numa de suas malas e foi usufruir a noite da cidade da garoa. Foi aí que cometeu seu maior erro. Entrou numa das casinhas-de-luz-vermelha da Sé. Arrumou um rabo de saia, bebeu todas e gastou todos os duzentos reais. Os únicos. O único dinheiro que tinha depois do roubo e do churrasquinho. Voltou ao amanhecer, quase foi atropelado na Avenida Maria Paula pelo trânsito das seis da manhã. Entrou no quarto e deitou-se na cama. Ao acordar, de ressaca, lembrou-se de sua falecida mãezinha e pediu perdão pela noite de libertinagem – quem fez isso foi a personagem, e não eu, este modesto narrador ateu que vos fala. Ou melhor, que voz escreve – vestiu-se, almoçou no restaurante do hotel e quando foi pagar a conta pela estadia, viu que não tinha mais nenhum tostão. Averiguou todas as meias, malas e bolsos. Nada! E o dono, para não sair no prejuízo o fez lavar toda a louça do almoço e dos cafezinhos servidos aos outros hóspedes. Só então pode partir para a rodoviária e daí vocês já sabem.
Então, José Luis estava lá, sentado no banco de plástico a observar todos os movimentos humanos e inumanos que vagavam pela rodoviária. Ali perto se encontrava um mendigo. Não muito sujo, não muito limpo. Quando o mendigo avistou José Luis, correu, literalmente, correu para se sentar ao seu lado. Tentou puxar conversa com José Luis, ofereceu um cigarro a José Luis, ficou olhando com um amigável sorriso esperando respostas de José Luis. E José Luis levantou-se, e sentou-se em outro banco, agora de madeira. Um olhava para o outro, frente a frente, e permaneceram neste estado por horas. Em busca de algo para saciar o tédio ocioso que tomava conta do tempo, o nosso protagonista revirou sua bolsa, retirou um livro do Saramago. Por este lado, José Luis não era tosco, nem idiota, nem imbecil. Leu dez, vinte, trinta páginas, e quando chegou na trigésima primeira, encontrou uma nota de dois reais. A felicidade tomou conta de sua face, seus olhos tiniam ao olhar aquela velha, amassada e enrugada nota. Como ainda eram dez horas da noite e a rodoviária ainda estava cheia, saiu em busca de algum alimento. Comprou um sanduíche de queijo com presunto, uma dose de Rabo-de-Galo e um pingado. Voltou ao seu banco para poder saciar a fome que tomava conta de suas entranhas.
Nestes exatos quinzes muitos em que ceava, começou a reparar nas pessoas que ali estavam ao seu redor. Havia um casal homossexual aos beijos numa das calçadas. Outro casal, só que heterossexual, aos amassos num canto escuro, e não muito longe dele uma moça lendo um desses livros mágicos de fantasias mágicas. E, na sua frente, o mendigo que lambia os beiços ao ver o sanduíche. Não pode deixar de mirar tal mendigo e sua fome, que também o consumia. Levantou-se e foi direto ao coitado, ofereceu o resto de pão que sobrou e a dose por completa da pinga e bebeu o pingado.
- Muito obrigado, meu senhor, que os astros lhe protejam em seu caminho.
- Ainda tem aquele cigarro que me ofereceu antes?
- Sim, tome. Não fumo.
- Então por que o guardou consigo?
- Porque sabia que você estaria aqui.
- Mas como sabia?
- Ouvi sua conversa com aquela beldade de moça sobre sua passagem. Quando você mexeu em sua bolsa, deixou cair um maço vazio e quando vi que um rapaz tinha deixado cair um único câncer num desses bancos, guardei-o para lhe oferecer.
- Muito obrigado, então. Sabe, não sei como matarei o tempo até a hora de meu ônibus.
- Onde você mora?
- Onde-Judas-perdeu-as-botas.
- Ah... O que está lendo?
- Saramago, conhece?
- Sim, já li cinco de suas obras.
- Como leu? Como o conheceu?
- Fui professor.
E os dois ficaram ali conversando por horas. O casal gay se foi. O outro casal entrou num dos ônibus e a moça da mágica magia entrou no banheiro e sumiu. José Luis cochilou, o mendigo começou a ler o livro e amanheceu. Os guichês abriram por volta das oito da manhã, e um pouco antes, aquela moça do começo da história passou para iniciar seu turno. Viu José Luis, continuou caminhando e dirigiu-se ao seu posto de trabalho, lá abriu o sistema e verificou que à meia hora sairia um ônibus com destino a muito-longe, e que havia uma única passagem sobrando. Ela correu até onde se encontrava José Luis e o acordou. O mendigo que estava na metade do livro ficou a observar e não pode deixar de ver seus seios fartos e muito mais rubros que o normal.
- Senhor, senhor, acorde senhor!
- Ah... Sim, sim...
- Tenho ótimas notícias para o senhor, daqui à meia hora tem um ônibus que partirá sentido a sua cidade e consegui colocá-lo neste embarque – Nesta hora José Luis já estava bem acordado e com sorriso de orelha à orelha.
- Mas antes escova estes dentes que o bafo está me matando – disse o mendigo.
- Mas é claro! Como posso agradecer?
José Luis correu para o banheiro, escovou os dentes, os cabelos e a cara por completa, saiu de lá como gente. Foi ao mendigo, agradeceu o cigarro, a companhia e deu-lhe o livro para que o terminasse de ler. O mendigo agradeceu, despediu-se de José Luis que saiu correndo para a fila do ônibus. Quando a moça percebeu que ele já iria embora, foi até ele.
- Desculpe-me se fui grossa com o senhor no começo – Nisso a voz da moça deixou de ser profissional e passou a ser sensual, mas melancólica. José Luis, que de tonto não tinha nada, disse:
- Não me chame de senhor, mas de você.
- Então, quando você voltar para São Paulo, venha me visitar – E deixou um papelzinho no bolso da jaqueta de José Luis – Até logo e boa viagem.
- Despediu-se, e o nosso protagonista ficou ali parado, admirando aquele paraíso em forma humana indo embora num rebolado gingado, desmontando o quadril. Só saiu do transe quando o motorista o chamou e José Luis entrou e sentou-se no lugar indicado pela terceira e nova passagem.
Quando se sentou, José Luis se lembrou do bilhete em seu bolso. Retirou-lhe de lá e começou a lê-lo. Nele havia o telefone e o endereço da moça e uma dedicatória: “Ao meu último passageiro. Com amor. Moça”.